Lembrei-me de uma canção do rico folclore da Região Lunda, em Angola, que diz:
"Ana mapwo, mweko ko Ndundu kexi kumona bosse mapalika: bosse ngwehe kamacinquenta / mujimba walyeca ngwe longa lya huma!"
Tradução: As moças do Dundu, sempre que vêem o “boss” — alguém afortunado — solicitam: “Boss, dê-me um kamacinquenta (um valor), amolecendo o corpo como se fossem um “prato de barro” (longa lya huma).
Essa música evoca o termo kamacinquenta que, embora remeta ao número cinquenta, carrega um significado muito mais profundo. No universo cokwe, kamacinquenta é uma oferta simbólica — um gesto de reconhecimento, gratidão ou desejo — feito àqueles que ocupam um lugar de destaque ou que, de alguma forma, marcaram a nossa trajectória. Pode ser também um acto de beneficência.
A imagem do corpo que se amolece como longa lya huma — o prato de barro moldado pelo oleiro — é poderosa. Ela representa a vulnerabilidade e a maleabilidade do desejo, mas também a capacidade de transformação. O barro, inicialmente mole, é moldado com cuidado e intenção, e depois endurece, tornando-se útil e durável. Assim também são os vínculos humanos: frágeis no início, mas capazes de se tornar sólidos quando nutridos com respeito e reciprocidade.
Esse gesto de pedir e oferecer algo significativo encontra eco em outras culturas angolanas.
O termo kaquinhentu, cantado por Robertinho no universo ambundu, carrega o mesmo espírito. Embora os números sejam diferentes — cinquenta e quinhentos — o valor simbólico é o mesmo: dar algo que importa, seja material ou afectivo, como forma de reconhecimento.
A canção “Kaquinhentu” reforça esse valor com uma estrofe comovente:
"Se wala nyi kaquinhentu / bana tata, bana tata nyi mama / ene akuvalele/
Kuxinge mamênu, kubete tatênu / ene akuvalelê, ene akusaselê ..."
Tradução: Se tiveres um kaquinhentu (algo de valor), dá-o a teu pai e tua mãe (progenitores).
Não ofendas a mãe nem batas no pai. Foram eles que te geraram e te cuidaram.
Ambos os termos revelam como diferentes etnias expressam, por meio da linguagem e da música, valores comuns de solidariedade, gratidão, desejo e transformação. O kamacinquenta e o kaquinhentu não são apenas números — são gestos que moldam relações, como o oleiro molda o barro.